Por que a língua de sinais ainda não é ensinada na maioria das escolas?
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- 4 de jun.
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Atualizado: 24 de jul.
Você já tentou imaginar como é viver em um mundo que não fala sua língua? Para milhares de pessoas surdas no Brasil, essa é uma realidade diária. A Língua Brasileira de Sinais, ou simplesmente Libras, é o principal instrumento de comunicação dessas pessoas.

Mais do que um meio para se expressar, ela representa um símbolo de identidade, cultura e resistência da comunidade surda no país.
A origem da Libras no Brasil
Em 1857, foi fundado o primeiro instituto oficial de educação para surdos no Brasil, o Instituto Imperial de Surdos-Mudos, no Rio de Janeiro. Ele foi criado por iniciativa de Dom Pedro II, que convidou o professor surdo francês Ernest Huet para implementar o ensino. Huet trouxe com ele a Língua de Sinais Francesa (LSF), que passou a ser usada na formação dos alunos.

Com o tempo, a LSF se fundiu aos gestos já utilizados pelas pessoas surdas no Brasil, formando o que hoje conhecemos como Libras — uma língua visual com gramática e vocabulário próprios, diferente do português.
Apesar do início promissor, em 1880 ocorreu o Congresso de Milão, um encontro internacional reunindo educadores, em sua maioria ouvintes, que determinou um rumo radicalmente diferente para a educação de pessoas surdas em todo o mundo. Naquele evento, foi decidido que a fala e a leitura labial deveriam ser os únicos métodos adotados no ensino dos surdos, resultando na proibição oficial do uso das línguas de sinais.
Os participantes defendiam que o uso dos sinais prejudicava a integração dos surdos na sociedade. Um aspecto ainda mais grave é que poucos representantes surdos estiveram presentes, e suas opiniões foram completamente desconsideradas.
No Brasil, essa decisão fez com que a Libras fosse banida das salas de aula, e alunos surdos fossem obrigados a se comunicar apenas por meios orais. Durante boa parte do século XX, a Libras sobreviveu em espaços informais — entre amigos, familiares e associações de surdos — mas ficou longe do reconhecimento institucional.
Por que ainda não aprendemos Libras na escola?
A exclusão da Libras do currículo escolar não é apenas resultado da decisão tomada em 1880, por mais que isso tenha tido grande influência: A realidade nas escolas brasileiras ainda é muito limitada por questões de políticas públicas frágeis.
Atualmente, a Lei nº 10.436 (2002) reconhece oficialmente a Libras como o segundo idioma nacional ao lado do português, porém a educação básica brasileira ainda não incorpora a Libras como disciplina obrigatória para todos os alunos. O que ocorre, muitas vezes, é o uso de intérpretes para alunos surdos — quando há — mas sem um esforço mais amplo para incluir o ensino da Libras no currículo geral. Isso cria um ambiente de exclusão: o aluno surdo depende de mediação e, ao mesmo tempo, os colegas ouvintes não têm acesso ao seu idioma.
Além disso, há falta de professores capacitados para ensinar Libras, tanto para alunos ouvintes quanto surdos. Muitos cursos de licenciatura, por exemplo, oferecem a disciplina de Libras apenas como optativa, e de forma superficial. Outro fator é o desconhecimento sobre a cultura surda. Ao invés de promover a valorização da diversidade linguística, o sistema ainda tende a “adaptar” os surdos ao modelo oralista, como se a Libras fosse apenas um recurso compensatório — e não uma língua legítima para todos.
Portanto, a exclusão da Libras do currículo escolar não é apenas resultado da falta de vontade política, mas também de um modelo educacional que ainda carrega os ecos da decisão tomada em 1880. Uma mudança real exige políticas públicas consistentes, formação adequada de professores e valorização da cultura surda como parte da diversidade brasileira.
Libras está em alta — e é hora de aproveitar o momento
Apesar dos desafios, a Libras tem ganhado mais espaço e visibilidade nos últimos anos. Nas redes sociais, surgem cada vez mais influenciadores surdos e intérpretes de Libras que compartilham conteúdos educativos. A linguagem de sinais também aparece com mais frequência em transmissões de TV, eventos culturais e até em jogos de futebol.
Em setembro de 2024, por exemplo, o G20 Brasil firmou parceria com a UFRGS para que os conteúdos oficiais do evento sejam traduzidos para Libras. É a primeira vez que o G20 conta com esse tipo de inclusão linguística no Brasil. Já em abril do mesmo ano, o governo paulista divulgou que o programa “São Paulo São Libras” ultrapassou 7.700 atendimentos em órgãos públicos como delegacias e postos de atendimento ao trabalhador, mostrando que a demanda por acessibilidade é real e crescente.

Outro avanço importante é o uso da tecnologia: Em maio de 2024, o CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) lançou uma ferramenta baseada em inteligência artificial capaz de traduzir Libras para o português — e vice-versa — em tempo real. A ferramenta reconhece gestos por meio de câmeras e os converte em texto ou fala, o que pode facilitar o atendimento a pessoas surdas em hospitais, farmácias e repartições públicas.
Esses avanços mostram que a Libras está mais presente do que nunca. Mas é preciso garantir que essa visibilidade se transforme em política de inclusão sólida, principalmente no ambiente escolar.
Curiosidade: Libras tambémpode ser tátil

Mas e se a pessoa for ao mesmo tempo surda e cega? Isso significa que ela não consegue se comunicar? Na verdade, existe uma modalidade adaptada da Libras chamada Língua de Sinais Tátil, que permite a comunicação por meio do toque.
Nesse sistema, a pessoa surdocega sente os sinais através do contato das mãos, garantindo sua autonomia e inclusão, mesmo diante de múltiplas limitações sensoriais.
E se todos aprendessem Libras?
Imagine um Brasil onde toda criança aprendesse Libras na escola desde os primeiros anos, como uma matéria tão comum quanto português ou matemática? Isso não só ajudaria alunos surdos a se sentirem parte da escola de verdade, como também formaria ouvintes mais empáticos, preparados para conviver com a diversidade.
A Libras precisa sair dos nichos e ocupar os espaços públicos, inclusive os currículos escolares. Isso exige planejamento, investimento e, acima de tudo, vontade política e social. Afinal, quando aprendemos Libras, não estamos só adquirindo um novo vocabulário — estamos reconhecendo que existem muitas formas de e comunicar com o mundo.
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